Jornal Biosferas

Brand


ARTIGOS: Anatomia, plastinação, Gunther von Hagens




Vida ao corpo morto?

Gunther von Hagens, anatomista alemão, criou uma técnica inovadora de preservação de tecidos biológicos, denominada "plastination". Por meio dessa técnica, Gunther von Hagens tem realizado inúmeras exposições pelo mundo que tem capturado a curiosidade de milhares de pessoas. Suas exposições revelam o corpo humano tal como ele é, sem os comuns esfacelamentos gerados pelas técnicas tradicionais de preservação às diferentes peças anatômicas. O arranjo dos corpos plastinados nas galerias atualiza a disposição artística dos cadáveres presentes nas pranchas anatômicas renascentistas.

Estaria o trabalho de Gunther von Hagens propondo novas visões e reflexões sobre o corpo, sobre o quê é a vida ou a morte, assim como as obras renascentistas promoveram uma ruptura com a visão de corpo intocável, de morte pútrida e vida eterna? Escritos da atualidade têm defendido a ciência presente na obra de Von Hagens enquanto uma nova técnica que resgata a arte de outrora. Dada a associação entre ciência e arte, a intenção do presente estudo é a de realizar reflexões acerca do corpo no limiar entre ciência e arte, limiar esse que desde os primórdios do Renascimento encontra-se representado em diferentes pinturas, sob diferentes aspectos, de simples esboços de esquemas anatômicos a pinturas de aulas de anatomia.

De acordo com a página on-line do trabalho de Von Hagens, resumidamente tem-se que o anatomista nasceu em 1945, ingressando na Friedrich Schiller University em 1965, onde iniciou seus estudos de medicina, os quais foram interrompidos com sua prisão entre 1969 e 1970 por motivos políticos. Somente em 1973, formou-se em Medicina pela Lübeck University. Em 1977, Von Hagens criou a plastinação, a sua inovadora técnica de preservação de tecidos biológicos que, resumidamente, inicialmente interrompe quimicamente a decomposição do cadáver e submete-o totalmente ou em partes à própria penetração e preenchimento por diversos polímeros que são capazes de assegurar: 1) rigidez, sem deformar as mais variadas estruturas biológicas; 2) coloração, que não será prejudicada pelo passar do tempo; e 3) maleabilidade, para manuseio e disposição artística do material preservado. Como última etapa do processo de plastinação, então, há a cura das peças recém-plastinadas, visando que as mesmas possuam um ótimo acabamento para utilização enquanto material de ensino, de revelação do corpo humano.

Essa preocupação com o acabamento das peças anatômicas é a preocupação possivelmente máxima das exposições de Gunther von Hagens. Segundo o anatomista, todo o seu trabalho representa uma nova abordagem do corpo para o ensino de anatomia, cuja técnica inovadora e suas obras decorrentes, ainda que trazendo o clássico desmembramento do corpo presente na essência dos mais antigos e diversos estudos anatômicos, possibilitam aos observadores enxergar um corpo (e até mesmo atravessa-lo com o olhar) que na sua origem nunca foi artificial, nunca foi forjado por um molde criado pelas mãos humanas. Gunther von Hagens, assim, revela aos olhares curiosos maravilhas até então inimagináveis; maravilhas desde sempre presentes em nós mesmos.

Embora não se considere um artista, de acordo com entrevista cedida à Revista Superinteressante de setembro de 2012, Gunther von Hagens apresenta um trabalho que se situa em uma interface entre ciência e arte, a qual lhe rendeu recentemente uma referência do jornal Folha de S. Paulo de 18 de julho de 2013, com a publicação da matéria "Uso de mortos na arte tem raiz no século 16", que enfatizava a apropriação de elementos artísticos do Renascimento em exposições artísticas contemporâneas que trazem como elemento principal ou de destaque o corpo, (ainda) vivo ou morto, inteiro ou fragmentos, humano ou não. Realmente há ligações estéticas entre as obras anatômicas de Gunther von Hagens e os tradicionais estudos renascentistas do corpo.

A partir de uma ciência ousada, que surpreende até mesmo a arte, ou ainda, que se torna tão artística, o corpo até então vivo parece aproximar-se de sua preservação eterna. Pela plastinação criada por Gunther von Hagens, o corpo tem estagnado em si as suas marcas histórico-sociais e, parecendo não mais pertencer a este mundo, ainda insiste em pertencer; parecendo não mais se transformar, transforma-se à medida que não se altera, não se transformando mais. Os conhecimentos científicos caminharão pelas musculaturas, pelos órgãos, pelas fraquezas biológicas, ganhando conceitos, explicações e interpretações por sobre o químico cadáver que revela os segredos da vida e suas particularidades. Informações que correrão rompendo os limites das veias e artérias preservadas, alcançando uma ampla divulgação acerca de peças anatômicas, do funcionamento do organismo, da aceitação do corpo que nos pertence, da valorização da vida através do belo.

Assim, é nesse movimento-gatilho de informações-interpretações que a arte-ciência surpreendente do anatomista Gunther von Hagens prende a atenção e atinge o imaginário humano, conduzindo a reflexões até mesmo do que é a vida e do que é a morte - eis o cumprimento do papel da exposição científica, reforçado bela preocupação estética, enquanto um espaço e conteúdo midiático, de transmissão de conhecimentos.

Artur Rodrigues Janeiro







Nos encontre nas redes sociais: